A legislação sobre drogas no Brasil é
genérica e deixa o juiz sem critérios para distinguir o grande do pequeno
traficante. A crítica é da juíza Telma de Verçosa Roessing, da Vara de
Execuções de Medidas e Penas Alternativas de Manaus/AM, que defende alterações
legislativas para evitar condenações desproporcionais. “Realmente não há como
comparar a mulher que é flagrada levando drogas para o marido na prisão com uma
pessoa que fica vendendo grande quantidade de drogas nas chamadas bocas de
fumo. Ocorre que os tipos penais previstos na Lei de Drogas são genéricos e não
fazem diferença em relação à posição ocupada pelo agente na rede do tráfico,
não havendo proporcionalidade das penas. O juiz fica sem critérios objetivos
para nortear sua decisão”, afirmou a magistrada, em entrevista à Agência CNJ de
Notícias.
Telma
Roessing é uma das convidadas para o II Encontro Nacional do Encarceramento
Feminino, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Departamento
Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen/MJ) vão realizar em 21 e
22 de agosto, em Brasília/DF. Com a participação de vários especialistas, o
evento tem o objetivo de discutir soluções para as dificuldades enfrentadas
pelas mulheres no sistema carcerário. A seguir, os principais trechos da
entrevista:
A maioria
das mulheres presas no Brasil é acusada ou condenada por tráfico de drogas e
acaba cumprindo pena privativa de liberdade. A senhora acha que a pena de
prisão é adequada?
A pena
de prisão não se mostra adequada para as mulheres condenadas por tráfico de
drogas nem para qualquer tipo de condenação, haja vista a barbárie do sistema
prisional brasileiro constatada, inclusive, pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) em seus mutirões carcerários. A prisão reproduz desigualdade e não
corresponde às funções a ela declaradas. E, apesar de ser um mal necessário em
determinadas situações, o Estado não pode querer alcançar a segurança pública
só com repressão. É necessário reforçar as políticas públicas de educação,
assistência social, inclusão produtiva etc. A responsabilidade pela segurança
pública não é só do direito penal.
O que
leva as mulheres a se envolverem com o tráfico?
Persiste,
ainda, na sociedade, o discurso que associa criminalidade com periculosidade,
como se o envolvimento em crimes fosse prática exclusiva de minoria de pessoas
perigosas, as quais teriam de ser “transformadas” por meio do encarceramento,
afastadas do convívio social. O que se percebe, entretanto, é a criminalização
da pobreza. O sistema penal é seletivo. O tráfico de drogas no Brasil tem sido
o grande responsável pela ascensão da criminalização feminina. Não há como não
associar isso à falência do Estado nas questões sociais.
Qual o
perfil das mulheres presas por tráfico de drogas?
Pesquisas
realizadas no País apontam que as mulheres presas por tráfico de drogas no
Brasil são, em sua maioria, provenientes de estratos sociais baixos. Essa é a
clientela das penas privativas de liberdade e também das penas restritivas de
direito, as quais não deixam de reproduzir a seletividade do sistema prisional.
Sabe-se que os dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) indicam
que, no Brasil, o tráfico de drogas ilícitas é a atividade que mais leva
mulheres à prisão. No Amazonas, mais de 80% das mulheres presas são acusadas
por tráfico de drogas.
O que
a senhora tem a dizer sobre a mulher que é condenada por ter tentado levar
drogas para o marido no presídio?
Realmente
não há como comparar a mulher que é flagrada levando drogas para o marido na
prisão com uma pessoa que fica vendendo grande quantidade de drogas nas
chamadas bocas de fumo. Ocorre que os tipos penais previstos na Lei de Drogas
são genéricos e não fazem diferença em relação à posição ocupada pelo agente na
rede do tráfico, não havendo proporcionalidade das penas. O juiz fica sem
critérios objetivos para nortear sua decisão. Assim, seria muito importante que
fossem promovidas alterações legislativas que considerassem as circunstâncias
sociais, permitindo a descriminalização de condutas que poderiam ser tratadas
fora do direito penal, mesmo que demandassem algum tipo de sanção.
Qual a
importância da pena restritiva de direitos para a reinserção social?
Qualquer
pessoa condenada que seja poupada da prisão significa ganho. A pena restritiva
de direitos evita, de início, que mulheres possam se afastar de seus filhos ou
até mesmo de os parir dentro de uma unidade prisional. Isso já é grande ganho
em termos de contexto familiar. Por outro lado, fora do sistema carcerário,
elas terão mais oportunidades de inserção em políticas públicas de inclusão
social. Daí a importância do aumento de serviços públicos voltados para a
execução penal alternativa dentro do Poder Executivo que trabalhem,
principalmente, uma política de gênero. Para que sejam respostas eficazes, as
penas restritivas de direitos devem estar inseridas em política pública ampla
de alternativas penais que vislumbre outras práticas de controle social e se
agregue a outras iniciativas voltadas à prevenção criminal e à inclusão social.
Não tenho dúvida de que os debates do II Encontro Nacional do Encarceramento
Feminino vão evidenciar vários exemplos exitosos no trato com as penas
alternativas. Essa troca de experiências será salutar para a construção das
propostas.
Como a
senhora avalia o grau de aplicação, pelo Poder Judiciário brasileiro, das penas
restritivas de direito?
Há
mais de 10 anos foi implantada no Brasil, no âmbito do Ministério da Justiça, a
política nacional de apoio às penas e medidas alternativas, que vem tentando
dar maior eficácia a essas sanções por meio de fomento à criação de estruturas
de monitoramento e fiscalização. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem
reforçado bastante essa política no âmbito do Poder Judiciário. Antes disso,
havia muita resistência dos juízes em aplicar penas restritivas de direitos,
pois temiam que se transformassem em sinônimo de impunidade. Essa fase já
passou. O que se busca hoje é ampliar o escopo das alternativas penais e
reforçar as estruturas já existentes, com apoio do Poder Executivo dos estados.
Não tenho estatísticas nacionais, mas aqui no Amazonas os juízes titulares das
três Varas Especializadas em Crime de Tráfico de Drogas aplicam penas
restritivas de direitos sempre que cabíveis. Há uma quantidade muito grande de
processos de execuções de penas alternativas oriundos desses Juízos na vara em
que atuo.
Como
será a sua participação no II Encontro Nacional do Encarceramento Feminino?
Minha
participação no II Encontro Nacional do Encarceramento Feminino diz respeito à
coordenação do grupo de trabalho Tráfico de Entorpecentes e Penas Restritivas
de Direitos, juntamente com o juiz auxiliar da Presidência do CNJ Douglas de
Melo Martins. Os coordenadores dos grupos temáticos de trabalho têm a função de
colocar o tema proposto em discussão, estimulando debates com a participação de
todos os presentes, o que dará origem a propostas que serão votadas, aprovadas
e, posteriormente, levadas à plenária para aprovação final. As propostas
aprovadas, por certo, subsidiarão ações do CNJ.
Fonte:
Conselho Nacional de Justiça