Daniela Romano Tavares Camargo, Fernanda Botelho de Oliveira Dixo, Giovanna Vanni e Raísa Pillay Bartolomei
Diante de uma alteração drástica financeira, é comum surgirem dúvidas e preocupações em pessoas envolvidas em um vínculo obrigacional financeiro, como pensão alimentícia, surgindo questionamentos acerca da possibilidade de suspensão ou alteração dos valores pagos a título de alimentos, em razão da crise do coronavírus.
sexta-feira, 26 de junho de 2020
É inegável que a paralização ou redução de diversas atividades profissionais em razão da pandemia de covid-19 impacta direta e indiretamente a saúde financeira de muitas pessoas, ainda que de formas e intensidades distintas, sendo certo que os efeitos econômicos do atual momento serão sentidos muitos meses após a normalização das atividades, o que, sabemos, ainda está longe de ocorrer.
Dessa forma, diante de uma alteração drástica financeira, é comum surgirem dúvidas e preocupações em pessoas envolvidas em um vínculo obrigacional financeiro, como pensão alimentícia, surgindo questionamentos acerca da possibilidade de suspensão ou alteração dos valores pagos a título de alimentos, em razão da crise do coronavírus, tendo em vista que o não cumprimento da obrigação, mesmo que parcial, enseja a propositura de medidas executórias judiciais drásticas, como penhora de bens e até mesmo prisão, tratados adiante.
Sobre esse aspecto, inicialmente vale destacar que os valores fixados a título de pensão alimentícia podem derivar de duas formas: a primeira é decorrente da autonomia privada das partes (acordo) e a segunda é decorrente da imposição de uma decisão judicial proferida em ação que discuta sobre alimentos, seja com base em lei específica (lei 5.478/68), seja nos autos de outro tipo de ação em que se pleiteie a fixação de pensão alimentícia.
Em ambos os casos, considera-se que o valor da pensão tenha sido fixado tendo por base um equilíbrio – razoabilidade e proporcionalidade – sendo certo que não pode ser modificado por vontade unilateral, ainda que haja um notório desequilíbrio posterior, havendo a necessidade de se valer de instrumentos jurídicos adequados para se rediscutir valores já fixados de pensão alimentícia.
Certamente, a medida mais ágil e menos custosa para resolução da questão visando a redução dos alimentos (ou a majoração, o que dificilmente se considera no atual cenário pandêmico) é a proposta de renegociação extrajudicial por meio de advogado.
Em uma revisão de alimentos extrajudicial, é recomendável que conste expressamente a razão da proposta do novo valor para pagamento da pensão, embasada por elementos de provas que justifiquem a adequação, incluindo, no contexto atual, a comprovação do desequilíbrio econômico financeiro em razão da crise do coronavírus.
Para a concretização de um acordo extrajudicial, ainda que temporário, é importante que haja bom senso das partes, que as partes realmente se pautem pela ética e pela boa-fé objetiva, não deixando de se utilizar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade para se chegar a um valor que possa ser cumprido pelo alimentante e que simultaneamente não prejudique o credor dos alimentos.
Ainda, não se pode esquecer que acordos extrajudiciais que envolvem os interesses de menores ou incapazes devem ser homologados judicialmente para que sejam válidos como título executivo.
Infelizmente, em função de beligerâncias insuperáveis, a resolução amigável não é uma possibilidade para todos e, na hipótese de realmente inexistir consenso entre as partes, a solução que pode ser tomada para evitar inadimplência e, consequentemente, medidas executórias, é a propositura de ação revisional de alimentos com pedido liminar, ou, já havendo ação em curso, a realização de pedido de tutela antecipada incidental, na tentativa de rápida obtenção de decisão interlocutória fixando alimentos provisórios em quantia que possa ser cumprida pelo alimentante.
Como é sabido, para fins de arbitramento ou de modificação de valores da obrigação alimentar, são analisados pelo magistrado três pontos: (I) as possibilidades financeiras de quem será obrigado ao pagamento dos alimentos; (II) as necessidades daquele que recebe os alimentos, incluídas todas as despesas, sejam as essenciais para sobrevivência ou as de manutenção do padrão de vida; e (III) a proporcionalidade, que diz respeito ao equilíbrio entre o que o alimentante pode pagar e o que o alimentado necessita.
Em situações como a presente, de pandemia global, o que justifica a propositura da ação é a redução da possibilidade do alimentante e, embora as necessidades dos alimentados, via de regra, não tenham se modificado com a pandemia, deve-se ter em mente que o presente momento é excepcional, e nessa medida, espera-se a vinda de entendimentos de que as despesas não essenciais possam ser dispensadas ou reduzidas enquanto perdurarem as dificuldades econômicas.
Aliás, já há decisões neste sentido, valendo citar um precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo1, que, ainda no mês de abril, ou seja, no início das medidas de isolamento relativas à pandemia, reduziu a obrigação alimentar até o corrente mês de junho, em razão dos impactos econômicos na atividade profissional da alimentante, causados pelo confinamento social atualmente vivido.
Superadas as questões relativas às possibilidades de redução da obrigação alimentar, importa fazer algumas considerações acerca de como a pandemia tem impactado a execução dos débitos alimentares.
A obrigação de pagar alimentos está prevista no Código de Processo Civil e o meio processual de cobrança de alimentos devidos pelo alimentante depende do título executivo formalizado entre alimentante e alimentado.
Deste modo, quando se trata de títulos extrajudiciais, a cobrança dos alimentos se dá por meio de execução de alimentos, ao passo que quando se trata de títulos judiciais, a cobrança se dá por meio de cumprimento de sentença, podendo ambos os casos tramitar sob o rito da penhora e/ou da prisão.
Com efeito, pela imprescindibilidade do crédito alimentar, do qual decorre a sobrevivência do alimentado (tratando-se de direito fundamental), o respectivo inadimplemento pode resultar em medida extrema, qual seja a prisão civil, prevista na Constituição Federal.
Ocorre que, em razão de o ambiente prisional ser um local propício à rápida disseminação de doenças contagiosas – como é o caso da atual pandemia de covid-19 - há justificada preocupação das autoridades públicas em conter o avanço da doença também nestes locais. Assim, diante das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da recomendação 62/20 do Conselho Nacional de Justiça, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), logo no início do confinamento, analisou pedido feito pela Defensoria Pública da União e estendeu os efeitos da decisão que deferiu parcialmente a medida liminar para determinar o cumprimento das prisões civis por devedores de alimentos em todo o território nacional, excepcionalmente, em regime domiciliar (PExt no Habeas Corpus 568.021 - CE (2020/0072810-3)).
Como era de se esperar, referida decisão acabou sendo pauta de debates, tendo em vista que a prisão civil para o devedor de alimentos é, de fato, o meio mais ágil de pagamento coercitivo ao alimentando, de modo que a não aplicação de tal pena da forma comum fatalmente pode privilegiar devedores, pois a prisão de forma domiciliar não atinge a finalidade pretendida na medida em que retira seu caráter coercitivo.
Obviamente, os efeitos objetivados pela prisão civil, que, por sua natureza, deve ser cumprida em regime fechado, ficam prejudicados quando alterada sua modalidade para regime domiciliar, mormente considerando que, seguindo as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), pessoas de todos os continentes estão restritas de locomoção, cumprindo o isolamento social como forma de contenção da disseminação do Coronavírus.
Dessa forma, uma das questões sobre a efetividade da prisão domiciliar do devedor de alimentos é qual medida alternativa pode ser adotada como técnica coercitiva a um devedor de alimentos, uma vez que a maioria das pessoas está com a liberdade cerceada para colaborar no controle da epidemia.
Alguns profissionais atuantes no direito de família defendem, em debates, o uso da criatividade em defesa do alimentando, como alternativa à prisão civil, sugerindo pleitear o bloqueio de cartão de crédito ou a constrição de bens de consumo (internet, TV, aplicativos de entretenimento como Netflix, Amazon Prime, Globo Play, entre outros) medidas estas que, em momento como este em que a circulação de pessoas está restrita, podem substituir as já muito praticadas medidas de constrição de passaporte ou carteira de habilitação do devedor. Entretanto, ainda não há nenhum precedente nesse sentido.
No momento, tem-se, também, a possibilidade do pedido de diferimento da prisão para o período pós pandêmico, uma vez que tal medida garantiria a aplicabilidade da prisão civil futuramente e, consequentemente, permitiria ao alimentado atingir a tutela jurisdicional pleiteada, haja vista que se trata de forma real de coação ao pagamento do débito.
Além da restrição máxima posteriormente à pandemia, há a possibilidade de converter-se a pena de prisão para a pena de penhora, para tentar garantir a efetividade da medida, haja vista que o alimentando possui necessidades basilares que não podem aguardar o fim da pandemia para serem supridas.
Caso já haja cumprimento de sentença ou execução de alimentos tramitando sob o rito da penhora, é viável priorizar a celeridade jurisdicional naqueles autos, enquanto há a suspensão da prisão.
Por fim, para corroborar o entendimento do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, vale destacar que, no último dia 10 de junho, foi promulgada a lei 14.010/20, entrando em vigor na mesma data, a qual determina, dentre outras matérias, que a prisão civil por dívida alimentícia seja cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar até 30 de outubro de 2020, quando se espera que a pandemia e a taxa de transmissibilidade do vírus estejam controladas.
A repentinidade com a qual a pandemia se espalhou, mudando drasticamente hábitos, formas de conviver e de gerar renda, exige cautela e adaptação dos meios jurídicos que visam a mitigação dos prejuízos esperados, seja para aqueles que dependem dos alimentos para o próprio sustento, seja para os obrigados a promover esse sustento. De outra parte, muito além das medidas judiciais, os esforços de cada indivíduo para o estabelecimento de diálogo e alternativas consensuais, mais do que sempre, mostram-se uma boa ferramenta para a superação da presente crise.
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*Daniela Romano Tavares Camargo é pós-graduada em Direito de Família e Sucessões. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC. Sócia do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.
*Fernanda Botelho de Oliveira Dixo é pós-graduada em Direito Processual Civil. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogada do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.
*Giovanna Vanni é bacharel em Direito pela FMU – Faculdades Metropolitanas Unidas. Advogada do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.
*Raísa Pillay Bartolomei é pós-graduada em Direito Processual Civil. Mediadora e conciliadora pela Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Bacharel em Direito pela PUC. Advogada do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.
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