04/12/2018
Eduarda Chacon Rosas
Fake news é coisa muito antiga.
Todo mundo se pergunta como resolver a situação das fake news. Sob que abordagem? No meu caso, quando parei para refletir pela primeira vez, me senti encurralada: como intervir com fake news sem impactar a liberdade de expressão? Algumas autoridades poderiam receber a atribuição explícita de distinguir verdade e mentira. Mas ousaríamos? Arriscaríamos dar ao poder público essa responsabilidade, sabendo que acabaríamos reféns e criaríamos um ciclo de insegurança, dependência e ignorância? Onde estabelecer o limite? Nos sentiríamos confortáveis abrindo mão das nossas próprias verdades? Das verdades alheias?
Esses são os dilemas que nos deixam atordoados no debate sobre fake news. Acredita-se que é uma questão de estabelecer o que é verdadeiro, mas, afinal de contas: o que é “verdade”?
Tecnicamente, os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, dentro de suas competências já estabelecidas, poderiam pontualmente determinar (não conceituar) o que seriam fake news. Nós meio que permitimos aos Net States que se imbuíssem extraoficialmente de tais poderes também. Nesta toada, diversos países editaram atos normativos sobre fake news e a Malásia chegou a criar uma lei para lidar especificamente com o problema durante as eleições. Provedores acabaram construindo mecanismos para determinar, em tese, que conteúdos são fake news a partir das denúncias de seus usuários. E o Judiciário, certamente, se colocou na posição de verificar se Governos e provedores estão ou não fazendo um bom trabalho. Ainda assim, nem mesmo na casuística, os “responsáveis” parecem concordar sobre a execução da tarefa. E é provável que não encontrem um middle ground, agora ou jamais. Tudo por causa do eterno impasse: a verdade e a mentira são relativas.
As regulações locais seguem na contramão da tendência de um movimento global de normatização da internet. Mas a regulação regional acaba se justificando pela dificuldade – senão impossibilidade – de um consenso a respeito de fake news e desinformação. Toda forma de expressão se relaciona diretamente a certos princípios soberanos de cada país e, por isso, direitos e obrigações são encarados de modo muito diferente ao redor do mundo. Desinformação não é sinônimo na China e nos Estados Unidos, ou mesmo nos Estados Unidos e no Reino Unido ou no Brasil. A fervorosa defesa da liberdade de expressão, aliás, pode (e deve) incluir a proteção constitucional contra a imposição de verdades institucionalmente definidas; o que torna infactível rotular e banir as fake news. No final, as sociedades dão um peso cultural muito distinto aos interesses e direitos das pessoas, dos Governos e das empresas – e isso afeta diretamente como se lida com (as noções de) verdades e mentiras.
As concepções de mentiras, acrescente-se, são naturalmente elásticas. Tem-se a mentira branca, desinformação, fake news, deep fakes, pós-verdade, jornalismo mal feito, notícia enganadora, notícia imprecisa, click baits, junk news, etc.. Por isso, acadêmicos e juristas estão quebrado a cabeça para extrair o sentido de cada ideia e aprender a diferenciá-las entre si. Todo esse esforço tem uma carga altamente subjetiva e a conclusões acabam sendo amplamente contestáveis. Sendo assim, como em tudo o mais, ninguém chega a uma resposta conceitual e correlacional definitiva. E se não é possível discernir mentiras e verdades com clareza e certeza, resta a esperança de educar a nós mesmos e aos demais para que escolhamos conscientemente como enfrentaremos os desafios de escolher, de modo informado e lúcido, quais nossas verdades.
Em resumo, a pergunta real é: como lidarmos com distorções da verdade na internet, de uma maneira que não agrida a liberdade das pessoas de dizerem e acreditarem no que desejarem?
E aqui cabe um parênteses: uma coisa é a ampla liberdade (de expressão) para eleger verdades, dizer e acreditar no que quiser. Outra coisa muito distinta, que se discutirá adiante, é a liberdade de agir impulsionado por essas crenças. As duas liberdades não encontram a mesma proteção jurídica pelo simples fato de terem impactos absolutamente desiguais em relação a terceiros.
Bem, isso tem sido feito desde sempre. Basta seguimos as regras. Essas regras não definem e escrevem na pedra o que é verdade, mas sim o que é certo e errado (pragmaticamente: legal e ilegal). Pessoas podem acreditar no que quiserem. O Direito irá apenas traçar a linha, estabelecer até que ponto alguém podem agir de acordo com suas crenças enquanto vive em sociedade, isto é: considerando que as demais pessoas têm tantos direitos quanto ela. Qualquer um pode acreditar no que quer que seja, até o limite em que não interfira com o direito alheio de fazer o mesmo. É assim que se lidou com a liberdade desde o início e é exatamente desta forma que se deve continuar lidando com ela – seja no sentido amplo da palavra ou quanto à tradução da liberdade em gestos.
Pensando desse modo, a maioria das normas de direito necessárias a resolver os impasses criados pelas fake news já existem, mesmo que, eventualmente, seja o caso de se jogar uma luz renovada sobre elas, oxigenar os ângulos hermenêuticos. Se houver a imprescindibilidade de se editar novas leis, o escopo legislativo não será definir fake news, mas tutelar direitos e estabelecer obrigações que dialoguem com o tema – como ocorre com a proteção à imagem e à honra na internet. E se com o fim de aplicar regras, as de ontem e as de amanhã, for preciso restringir ou reavaliar condutas, então que assim seja – e que o Judiciário seja o juiz disso, literalmente, como lhe é textualmente e culturalmente de direito.
Embora se advogue aqui que o direito existente é suficiente para endereçar o debate sobre fake news, não se desconsidera a importância dos aspectos sócio-culturais relacionados ao tema. O excesso de informações (falsas e legítimas) e a facilidade de disseminá-las por meio da internet é um desafio à parte porque nunca, antes, as pessoas foram tão expostas ao próprio desconhecimento. Falta consciência social a respeito da essencialidade de aprender e de duvidar. “Todos nós somos ignorantes, só que em diferentes assuntos” (Will Rogers). E nunca houve tanto assunto.
É bem triste observar quantas pessoas são vítimas da própria ignorância. E por ignorância não se fala simplesmente em não-educação/deseducação ou marginalização, mas em auto (des)conhecimento, limitações e (des)atualização. Nota-se, como exemplo, o caos instalado em países europeus quanto às campanhas de vacinação obrigatória. Pessoas andam espalhando rumores ou acreditando em boatos de que o governo estaria envenenando a população por meio das vacinas – o que não faz o menor sentido para mim (por milhares de razões), mas certamente faz para aqueles que causam comoção na Itália e na França recusando-se a vacinar seus filhos. Esse tipo de retórica apaixonada e desinformada leva ao inevitável questionamento do porquê as pessoas iniciarem e espalharem fake news. Se de um lado há os crentes, é notório que, do outro, muitas pessoas são apenas mal-intencionadas. Seria rebeldia? Maldade? Natureza humana?
O que se sabe, sem dúvidas, é que tanto os crentes quanto os não-crentes são progênie da ignorância, da desinformação e da não-educação/deseducação. Essa realidade, lamentável como seja, precisa ser reconhecida pelos Governos para que adotem as providencias pertinentes. Sim, compreensivelmente, fake news não era uma preocupação – pública ou privada – durante o crescimento da geração dos atuais-jovens-adultos. Mas as coisas mudaram exponencialmente. Então, se há algo que as autoridades deveriam estar fazendo, seria educando e conscientizando as pessoas (e não editando novas leis). Educando a população a questionar e checar os fatos aos quais tem acesso, tanto na internet quanto no mundo real. Formando uma sociedade de futuros-jovens-adultos que seja melhor do que a nossa.
Mais uma vez, indaga-se: como resolver o problema das fake news? Inicialmente, compreendendo que fake news não são o problema. Não em si mesmas. São, em verdade, o resultado de outros dois problemas. Depois, entendendo quais são os verdadeiros problemas e lidando com eles.
O primeiro impasse é a falta de educação (falta de informação) e a deseducação (literalmente, quando substituímos informação por desinformação). Educação como o oposto de ingenuidade e ignorância. As pessoas não percebem que nem tudo posto na internet é real porque, em resumo, desconhecem fatos e carecem malícia. Estão despreparadas. Somos os responsáveis por questionar a internet, da mesma forma que questionamos de tudo mais na vida. Mas aceitamos tudo o que nos empurram online.
Quando pensamos em fake news como algo que estaria enganando a todos, estamos nos enganamos a nós mesmos. Nenhuma informação-informação tem tanto poder em si mesma. O poder reside no (des)conhecimento. Desde sempre. É a falta de conhecimento (ainda que como maturidade, educação ou referencial), e não o conteúdo das fake news, que torna as pessoas vulneráveis. Não esqueçamos a expressão equivocadamente atribuída a Joseph Goebbels de que “quanto maior a mentira, mais gente acreditará nela”. Frase, na verdade, muito similar o que foi, de fato, dito pelo próprio Adolf Hitler em Mein Kampf. O que o Goebbels falou, com certa dose de licença poética, foi que ser moderno apenas significa dizer verdades eternas de novas maneiras (Michael: A German Destiny in Diary Form). Seja lá o que “verdades eternas” signifique para um propagandista nazista, Sócrates, Gandhi ou Beyoncé.
O segundo contratempo é o que chamo “histeria das fake news”. Se criou um tabu de que fake news são inescapáveis, inquestionáveis. São lavagem cerebral com consequências devastadoras e irremediáveis. Todavia, como dito antes, as pessoas podem acreditar no que quiserem até o limite de algumas “linhas” pré-estabelecidas. O Direito define essas linhas. Neste sentido, fake news não são inescapáveis. Podemos escolher agir corretamente ou não, mas somos todos juridicamente compelidos a agir dentro da lei.
A liberdade de um indivíduo, desde tempo imemoráveis, acaba no exato ponto em que começa a liberdade do seguinte. Aceitar isso significaria que ninguém precisa ser convencido – ou salvo – da malevolência das fake news, contanto que tais crenças não lesem aos demais. Pode-se acreditar à vontade que o Mostro do Espaguete Voador é uma divindade. Pode-se até acreditar em coisas sem sentido como supremacia racial ou extraterrestres; sendo irrelevante se esta crença resulta de um post na internet ou de um papiro egípcio. O que é inegociável é que crenças não podem ser impostas aos demais, sob qualquer pretexto.
Com isso, as fake news perdem (grande parte do) seu poder. Já não são capazes de passivamente alterarem o mundo ao seu redor. Nunca foram, em realidade. São as pessoas que agem sem raciocinar, sem confirmar as informações recebidas e sem, nem sequer, pensar se o que estão fazendo é certo ou errado, tudo porque leram algo na internet. Mas leram o que/porque quiseram. Acreditaram porque concordaram com o que leram ou se submeteram àquilo de modo irrefletido. Porque era conveniente. Fácil. Porque acreditam, erroneamente, é indiferente. Inconsequente. A culpa pelo que dá errado, pelas injustiças e crimes cometidos em nome das fake news, pois, também é de quem acredita nelas. De quem as passa pra frente.
Assim, percebemos que, de um modo bizarro e hipócrita, todo o drama a respeito da fake news é uma grande mentira (é fake news). Porque fake news é coisa muito antiga. Se nós, como sociedade global, iremos reconhecer essa constatação e nos responsabilizarmos por nossas escolhas, só o futuro dirá.
Fonte:
https://www.lexmachinae.com/2018/12/04/fake-news-do-ponto-de-vista-de-um-techie-lawyer/
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