12/12/2018
Izabela de Matos Bonifácio e Lucas José de Lima Frank e Silva[1]
Introdução
Desde o advento do Bitcoin em 2009, muito tem se discutido sobre a tecnologia que está por trás de quase todas as criptomoedas: a blockchain. Essa tecnologia possui múltiplas aplicações, e já é usada com grande sucesso por diversos bancos, empresas e órgãos governamentais pelo mundo. O objetivo deste artigo é fazer uma breve análise acerca das possíveis aplicações da blockchain na Propriedade Intelectual, com foco nos Direitos Autorais, além de suas possíveis vantagens e desvantagens.
Blockchain e Smart Contracts
As criptomoedas como o Bitcoin e o Ethereum se tornaram um dos assuntos mais abordados nas mais diversas áreas da sociedade. Das páginas de economia aos blogs especializados em tecnologia, o Bitcoin e outras criptomoedas têm sido muito discutidas. Um dos aspectos que mais provoca perguntas, entretanto, é a tecnologia por trás dessas “moedas virtuais”, chamada de blockchain (cadeia de blocos, em tradução livre). Essa tecnologia é a grande responsável pelo aspecto descentralizado e privado dessas novas moedas.
A blockchain pode ser pensada como um livro-razão imutável e impessoal. É uma rede peer-to-peer (ou seja, de usuário para usuário, sem passar por terceiros) que consiste de computadores conhecidos como nodes, espalhados pelo mundo inteiro. Esses nodes são responsáveis por validar toda e qualquer interação que ocorra nesta rede. Tal interação pode ser uma transação financeira, como é o caso do Bitcoin; um registro das etapas de uma cadeia de suprimentos; ou a execução de um contrato.
A aplicação mais famosa dessa tecnologia é o Bitcoin. Uma transação em Bitcoin possui vários estágios, e começa com uma solicitação de transação na blockchain. Os nodes que formam a blockchain validam a transação através de determinados algoritmos de verificação de dados. Depois que a transação é considerada válida, ela é combinada com todas as outras transações que já foram feitas por essa rede de nodes para criar um novo bloco de dados para a blockchain. Esse novo bloco de dados é, então, permanentemente adicionado a blockchain, e todos os dados dentro dele são imutáveis. A etapa de adição do novo bloco à blockchain é considerada a última etapa do processo, e a transação é finalizada[2].
Quando aplicada a uma cadeia de suprimentos, a blockchain ajuda a garantir a transparência da mesma, de forma que o consumidor final conheça todas as suas etapas e possua garantias de que seu produto é legítimo, além de evitar fraudes e diminuir custos do processo como um todo[3]. A IBM, uma das maiores empresas de tecnologia do mundo, atualmente desenvolve uma rede de blockchain voltada para esta aplicação[4].
Dentre as possíveis aplicações da blockchain, existem os smart contracts, contratos que se autoexecutam. Esses contratos são escritos como algoritmos, e dispensam a interferência de terceiros em uma negociação[5]. Assim como as transações de criptomoedas, os smart contracts também passam pelo processo de verificação e validação de uma blockchain. A autoexecução desses contratos, assim como a transparência da blockchain, garantem uma forma livre de intermediários, o que pode reduzir consideravelmente o tempo de negociações, regulações e outros tipos de conflitos[6].
As características de imutabilidade, confiança e publicidade da blockchain e a auto execução dos smart contracts, entretanto, chamam bastante a atenção de um dos ramos do Direito que mais tem apresentado dificuldade de adaptação a esta nova era de compartilhamento massivo e ininterrupto de conteúdo, seja por serviços de streaming ou por meio de redes sociais: o campo da Propriedade Intelectual.
O Blockchain e a Propriedade Intelectual
A Propriedade Intelectual (PI) lato sensu é um ramo do Direito altamente internacionalizado, o qual compreende os direitos autorais, os direitos de Propriedade Industrial, e demais direitos sobre bens imateriais[7] Os direitos de Propriedade Industrial são aqueles diretamente ligados aos interesses da indústria de transformações e do comércio[8] versando sobre os direitos relativos às invenções industriais, desenhos industriais, indicações geográficas, programas de computador, topografias de circuito integrado, e da transferência de tecnologia e informação tecnológica de patentes. Já os direitos de Propriedade Intelectual em sentido estrito – os quais serão foco do presente artigo – dizem respeito à proteção das obras literárias, artísticas e científicas.
Após o breve conceito traçado, parte-se para o ponto em que se pretende chegar com este artigo: entender quais problemas de direitos oriundos da Propriedade Intelectual poderiam ser melhor equacionados pelo uso da blockchain. Segundo a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), a blockchain pode ser usada para identificar a origem e autoria de uma obra, reforçar os direitos de licença de uso, controlar a distribuição e combater a pirataria, provar a autoria e anterioridade de uso na propriedade industrial, gerenciar os direitos digitais, estabelecer e reforçar os tratados de PI, integrar dados em escala global, realizar pagamentos em tempo real através dos Smart Contracts, além de aumentar a segurança e transparência de registros públicos, entre outras possibilidades que ainda estão sendo estudadas.[9]
Na indústria musical, a aplicação da blockchain aparenta oferecer soluções para problemas enfrentados há décadas pelos artistas, tais como a pirataria e o uso ilegal de conteúdo, a falta de equilíbrio entre o artista e o intermediário, a dificuldade em licenciar o conteúdo de forma prática e a falta de transparência existente nessa indústria.
Um problema muito enfrentado pelos artistas na indústria musical diz respeito à figura do middle man. Essa indústria está estruturada de tal forma que os cantores e compositores podem vir a receber uma porcentagem pequena pelo seu trabalho, enquanto serviços de streaming e companhias musicais reteriam a maior parte do montante. Nesta hipótese, cria-se um cenário em que os intermediários ganham muito mais do que o próprio artista, legitimando um sistema que beneficia mais os gestores da arte do que os próprios artistas.
Segundo estudos da Middlesex University London[10], as criptomoedas permitem que os artistas emitam suas próprias ações, possibilitando o financiamento de suas carreiras a partir de tokens, sem necessitarem da figura do intermediário bancário (middle man). Com isso, torna-se possível um canal direto entre o artista e seu público e, ainda que exista alguma intermediação, essa será muito mais branda e menos central.
A falta de transparência nas plataformas de streaming existentes é outro cenário que pode ser mudado com o registro das músicas em blockchain. Usualmente, os artistas têm pouca ou nenhuma informação sobre como os royalties sobre suas músicas são gerados[11] além da demora no pagamento desses royalties (que podem tem um delay de até 18 meses dependendo da plataforma). Uma plataforma peer-to-peer viabiliza a relação mais direta entre os ouvintes e os artistas, possibilitando que estes recebam instantaneamente por seu conteúdo, além de receberem uma parcela quase total da receita gerada, ao invés de uma pequena fração como usualmente ocorre.
Outra possibilidade existente com a aplicação dessa nova tecnologia é a maior facilidade em licenciar uma música por meio dos Smart Contracts. Através da deles, torna-se possível pré-definir os termos e condições de uso de uma música específica para cada finalidade. Assim, um artista poderia definir que suas músicas fossem usadas em um comercial por um preço X, em um trailer por um preço Y e em um filme por um preço Z[12], por exemplo.
Em vista disso, algumas startups começaram a explorar o conceito e desenvolveram plataformas de música construídas com a tecnologia blockchain. A plataforma Ujo[13], por exemplo, se baseia na Ethereum para criar uma base de dados transparente e descentralizada, possibilizando que os royalties gerados sejam repassados aos envolvidos de forma justa e instantânea. Outra plataforma que utiliza a blockchain é a PeerTracks, na qual o artista recebe mais de 90% das receitas geradas com seu conteúdo na plataforma.
Um artista que já vem se beneficiando dessa tecnologia para financiar sua carreira é Gramatik, produtor musical, que se remunera através de suas próprias criptomoedas (GRMTK). Para Gramatik, a blockchain representa não apenas uma forma de independência financeira, mas a criação de um ecossistema no qual seus fãs podem se tornar proprietários dos direitos e dos royalties de suas músicas e de tudo que cria e distribui em sua rede.[14]
Conclusão
Como foi possível perceber, os estudos acerca dos usos da blockchain mostram que essa tecnologia representa um conceito capaz de redefinir a logística de vários segmentos mercadológicos. Sua interseção com a Propriedade Intelectual possui enorme potencial para desburocratizar o acesso aos direitos autorais, principalmente no que diz respeito à maior autonomia dos artistas em relação às suas carreiras.
Contudo, apesar do otimismo em relação ao tema observado nos últimos meses, até a efetivação da blockchain será necessária a quebra de diversas barreiras tecnológicas, governamentais, organizacionais e até mesmo sociais[15]. Um dos maiores desafios a ser superado é a integração de todos os dados já existentes, que se encontram dispersos, dificultando a transferência das informações de licença de uso e de titularidade para essas novas plataformas.
Ainda parece cedo para saber de fato se a aplicação do blockchain na indústria da música trará todas as vantagens prometidas, visto que as plataformas que utilizam o blockchain ainda estão em uma fase muito recente. No entanto, os estudos acerca das aplicações práticas do blockchain na Propriedade Intelectual devem se ampliar, vez que estamos diante de uma tecnologia que pode criar um ecossistema capaz de redefinir toda uma indústria.
[1] Graduandos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, integrantes do Centro de Estudos de Direito e Tecnologia da UFRJ (CEDITEC-UFRJ). Artigo orientado pelos professores Kone Prieto Furtunato Cesário, Carlos Augusto Thomaz e Rodrigo Cantarino, coordenador externo, todos do CEDITEC-UFRJ. Cantarino é também advogado associado ao escritório Di Blasi, Parente & Advogados Associados.
[2] SHACKELFORD, S. J.; MYERS, S. Block-by-Block: Leveraging the Power of Blockchain Technology to Build Trust and Promote Cyber Peace. Yale Journal of Law and Technology: Vol. 19 (pt. I), Artigo 7. 2018. Disponível em: <http://digitalcommons.law.yale.edu/yjolt/vol19/iss1/7/>. Acesso em 9 de junho de 2018.
[3] CHENG, Evelyn. For all the hype, blockchain applications are still years, even decades away. Disponível em: <https://www.cnbc.com/2018/06/04/for-all-the-hype-blockchain-applications-are-still-years-even-decades-away.html>. Acesso em 9 de junho de 2018.
[4] IBM Blockchain. Blockchain for supply chain. Disponível em: <https://www.ibm.com/blockchain/industries/supply-chain>. Acesso em 9 de junho de 2018.
[5] GOPIE, Nigel. What are smart contracts on blockchain? Disponível em: <https://www.ibm.com/blogs/blockchain/2018/07/what-are-smart-contracts-on-blockchain/>. Acesso em 12 de julho de 2018.
[6] NG, T. S. Blockchain and beyond: Smart contracts. 2017. Disponível em: <https://www.americanbar.org/groups/business_law/publications/blt/2017/09/09_ng.html>. Acesso em 9 de junho de 2018.
[7] Barbosa, D. B. (2010). Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Lumen Juris.
[8] Barbosa, D. B. (2010). Uma Introdução à Propriedade Intelectual. Lumen Juris.
[9] CLARK, B.; McKENZIE, B. Blockchain and IP Law: A Match Made In Crypto Heaven? 2018. Disponível em: http://www.wipo.int/wipo_magazine/en/2018/01/article_0005.html. Acesso em 10 de junho de 2018.
[10] O’DAIR, Marcus. Music On the Blockchain.
[11] HEAP, Imogen. Blockchain Could Help Musicians Make Money Again. Harvard Business Review. Disponível em: https://hbr.org/2017/06/blockchain-could-help-musicians-make-money-again. Último acesso em 28/08/2018.
[12] AITKEN, Roger. MUSE: Leveraging Blockchain Technology To Revolutionize Music Industry. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/rogeraitken/2016/01/23/muse-leveraging-blockchain-technology-to-revolutionize-music-industry/#58d9efc92418. Último acesso em 27 de agosto de 2018.
[13] https://ujomusic.com/
[14] https://www.billboard.com/articles/news/dance/8046200/gramatik-cryptocurrency-launch-video. Último acesso em 10 de junho de 2018
[15] IANSITI, M. LAKHANI, K. R. The Truth About Blockchain. 2017. Harvard Business Review. Disponível em: https://enterprisersproject.com/sites/default/files/the_truth_about_blockchain.pdf. Acesso em 10 de junho de 2018.
Fonte:
https://www.lexmachinae.com/2018/12/12/alem-das-criptomoedas-propriedade-intelectual-blockchain/
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