segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A violência contra as mulheres é um problema de todos, diz especialista

11/09/2013

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM
 A programação científica do IX Congresso Brasileiro de Direito de Família que acontece entre os dia 20 e 22 de novembro, em Araxá (MG) vai abordar a violência de gênero e a conjugalidade. A diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam) Adélia Moreira Pessoa (SE), que vai discutir a questão, concedeu entrevista ao portal. Confira:
 
Como podemos definir violência de gênero?
 
O conflito é uma realidade da vida humana. Pode-se produzir em todos os lugares e tempos em que encontrem duas pessoas ou mais em interação, bastando para isso que se produzam discrepâncias de expectativas, valores ou de interesses. Pode exteriorizar-se nas relações sociais, familiares, de trabalho e afetar toda a comunidade.
 
No conflito que chega à violência, podemos vislumbrar uma relação interpessoal, em um dado contexto onde se desenvolve, devendo ser vista como ato e processo. Assim também, a violência de gênero não pode ser vista como um ato isolado – ela emerge de uma combinação complexa de fatores históricos, econômicos, culturais, sociais, institucionais, interacionais, familiares, pessoais em um contexto onde a mulher, apesar do reconhecimento da igualdade nas leis, ainda, muitas vezes, é tratada como inferior. Conforme disse Azevedo e Guerra, a violência de gênero "é uma forma de micropoder e ocorre sem distinção de credo, classe social, etnia; não se restringe ao lar, mas tem nele sua origem".
 
O uso da categoria de gênero pode explicar melhor a violência contra a mulher pois o sexo - realidade biológica do ser humano - não é suficiente para explicar o comportamento diferenciado do masculino e do feminino em sociedade; dessa forma, as questões ligadas a gênero, envolvendo o jogo das diferenças, onde os papéis são definidos culturalmente entre agentes imersos em relações de poder distribuído de modo desigual entre os sexos podem trazer luz sobre a violência contra a mulher. 
 
O conceito de gênero, assim, é usado para afirmar algo mais amplo que sexo e como produto social aprendido, institucionalizado e transmitido de geração em geração. A diferenciação de papéis a serem desempenhados por homens e mulheres era fundamentada na própria natureza que teria demarcado espaços para os sexos.  Filósofos, religiões, médicos e até as ciências serviram para reforçar a crença na inferioridade do sexo feminino e as normas jurídicas foram instrumento de sujeição da mulher através dos séculos, contribuindo para a herança do silêncio, discriminação e da violência.  
 
A cultura milenar engendrou a sobreposição do masculino em relação ao feminino com as antinomias: racional/ irracional, ativo/passivo, pensamento/sentimento, razão/ emoção, poder/sensibilidade, objetivo/subjetivo.
 
Segundo alguns estudos sobre violência de gênero, esta aparece como reflexo do patriarcalismo – caracterizado pelo exercício da autoridade do homem sobre mulher e filhos no contexto familiar, em que a mulher é historicamente vitimada pelo controle social masculino; Outros definem violência contra as mulheres como expressão da ideologia da dominação da mulher pelo homem, resultando na anulação da autonomia da mulher, concebida tanto como “vítima” quanto “cúmplice” da dominação masculina; uma terceira corrente, nomeada de relacional, relativiza as noções de dominação masculina e vitimização feminina, concebendo a violência como uma forma de comunicação, um jogo do qual a mulher não é “vítima” senão “cúmplice”.
 
A violência de Gênero revela-se através de várias molduras, expressando-se por diversas formas que não se excluem mutuamente (física, moral, psicológica, patrimonial e sexual). Em relação à violência de Gênero, não podemos deixar de destacar o papel de fatores como poder, hierarquia, autoridade, impunidade, ainda presentes na vida pública e refletidas na experiência da vida privada.
 
É preciso frisar sempre que violência doméstica, especialmente contra as mulheres, é um fenômeno complexo, suas causas são múltiplas e de difícil definição. No entanto, suas consequências são devastadoras para mulheres, crianças, adolescentes, idosos, vítimas diretas ou indiretas dessas agressões: vão muito além daquele ato e de seus efeitos imediatos, gerando uma reprodução geracional dessa violência.  Assim, é a paz e felicidade das FAMÍLIAS que estão em jogo. Repetimos sempre: a violência contra as mulheres é um problema de todos nós...
 
Qual a relação entre gênero, violência e conjugalidade?
 
Estudos indicam como se desenvolvem as relações conjugais, especialmente como o poder masculino tem subjugado a mulher. Conforme explicitado pela Profa. Dra. Maria Helena Santana Cruz, três correntes podem ser elencadas para explicar esta relação: a primeira entende que a violência resulta da ideologia de dominação masculina; a segunda assevera que a violência relaciona-se ao patriarcado; a terceira relativiza a perspectiva dominação-vitimização. 
 
Com efeito, no enfoque da primeira corrente, Marilena Chauí entende que a violência contra as mulheres resulta de uma ideologia de dominação masculina que é produzida e reproduzida tanto por homens como por mulheres. A ideologia define a condição “feminina” como inferior à condição “masculina” sendo as mulheres, muitas vezes, “cúmplices” da violência que recebem e que praticam, mas sua cumplicidade não se baseia em uma escolha ou vontade, já que a subjetividade feminina fica destituída de autonomia. As mulheres figuram como “cúmplices” da violência e contribuem para a reprodução de sua “dependência” porque são “instrumentos” da dominação masculina. 
 
A violência é definida como uma ação que transforma diferenças em desigualdades hierárquicas com o fim de dominar, explorar e oprimir.  A ação violenta trata o ser dominado como “objeto” e não como “sujeito”, o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. O ser dominado perde sua autonomia, ou seja, sua liberdade, entendida como “capacidade de autodeterminação para pensar, querer, sentir e agir”. As diferenças entre o feminino e o masculino são transformadas em desigualdades hierárquicas através de discursos masculinos sobre a mulher, os quais incidem especificamente sobre o corpo da mulher (Chauí, Marilena. “Participando do Debate sobre Mulher e Violência”. In: Franchetto, Bruna, Cavalcanti, Maria Laura V. C. e Heilborn, Maria Luiza (org.). Perspectivas Antropológicas da Mulher 4, São Paulo, Zahar Editores, 1985) . 
 
A segunda corrente que tem por base a perspectiva feminista e marxista do patriarcado, desenvolvida no Brasil por  Heleieth Saffioti,  acrescenta a dominação masculina aos sistemas capitalista e racista. Para Saffioti: “o patriarcado não se resume a um sistema de dominação, modelado pela ideologia machista. Mais do que isto, ele é também um sistema de exploração. Enquanto a dominação pode, para efeitos de análise, ser situada essencialmente nos campos político e ideológico, a exploração diz respeito diretamente ao terreno econômico”. Assim a violência contra as mulheres resulta da socialização e ideologia machista, na qual se sustenta esse sistema, que socializa o homem para dominar a mulher e esta para se submeter ao “poder do macho”. Dada sua formação de macho, o homem julga-se no direito de espancar sua mulher. Esta, educada que foi para submeter-se aos desejos masculinos, toma este “destino” como “natural”.  
 
Ao contrário de Chauí, Saffioti rejeita a ideia de que as mulheres sejam “cúmplices” da violência. A autora define as mulheres como “sujeito”, mesmo sendo vitimas dentro de uma relação desigual de poder com os homens. “As mulheres se submetem à violência não porque consintam”: elas são forçadas a “ceder” porque não têm poder suficiente para consentir (Saffioti, H. I. B. A Mulher na Sociedade de Classes: Mito e Realidade. Petrópolis, Editora Vozes, 1976;  também Saffioti, Heleieth I. B. O Poder do Macho. São Paulo, Moderna, 1987. Saffioti, H. I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo, Edit. Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 79-80).
 
A terceira corrente dos estudos sobre violência contra as mulheres relativiza a perspectiva dominação-vitimização. O principal trabalho que exemplifica essa corrente é de Maria Filomena Gregori, publicado no início dos anos 90 (Gregori, Maria Filomena. Cenas e Queixas: Um Estudo sobre Mulheres, Relações Violentas e a Prática Feminista. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993). Segundo ela, a libertação da mulher depende de sua conscientização enquanto sujeito autônomo e independente do homem, o que será alcançado através das práticas de conscientização feminista, argumentando que as mulheres em situação de agressão não são simplesmente “dominadas” pelos homens ou meras “vítimas” da violência conjugal. 
 
A exemplo de Chauí, Gregori concebe a mulher como “cúmplice” da reprodução dos papéis de gênero que alimentam a violência. Só que tal cumplicidade não é explicada por Gregori como mero instrumento de dominação, pois a mulher, muitas vezes, reforça a reprodução dos papéis de gênero, coopera na sua produção como “não-sujeito”, colocando-se em uma posição de vítima, porque assim obtém proteção. O medo da violência também alimenta a cumplicidade da mulher. 
 
Entendemos que não pode ser descartada a ideia de patriarcado como uma das raízes da violência contra a mulher. Ao lado disso, é necessário relativizar o modelo de dominação masculina e vitimização feminina para que se verifique o contexto no qual ocorre a violência. A mulher não é mera vítima  - o discurso vitimista não só limita a análise da dinâmica desse tipo de violência como também não oferece uma alternativa útil - a mulher pode ser cúmplice de sua própria vitimização, e não sair dessa situação. É necessário entender a complexidade da violência contra a mulher, dentro de um contexto de uma hierarquia de poder nas relações sociais existentes. 
 
 
Quais os desafios a serem superados nas relações conjugais para diminuir a violência contra mulher?
 
A abordagem da questão da violência nas relações conjugais como um fenômeno social que exige ações públicas enfrenta diversas resistências. Primeiramente é importante considerar a ideia, ainda presente em nossa cultura, de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Além disso, ainda persistem compreensões limitadas na conceituação “das violências”: que tipos de comportamentos cada um dos parceiros nomeia como “violência”? O que os “outros” entendem como “violência”? Qual o seu  limite em uma relação familiar?  
 
Alguns desafios precisam ser superados para a efetivação do enfrentamento à violência de gênero, por exemplo, a dificuldade e instabilidade das mulheres, em situação de violência, para denunciar e manter a denúncia; a incompreensão e a resistência dos agentes sociais responsáveis pelos atendimentos e encaminhamentos; a falta de apoio efetivo para as mulheres em situação de violência, no âmbito privado e público; a falta de programa de atendimento ao homem autor da agressão e os elevados índices de reincidência específica.
 
A questão, repita-se, é de suma complexidade; não é possível admitir um binarismo simplista: “homem-algoz” e “mulher-vítima”. Pois o algoz – não está sozinho – faz parte de um sistema e a vítima é um sujeito, uma mulher em situação de violência, em uma relação; é necessário que as mulheres e os homens tenham consciência dos diferentes estereótipos sexuais e dos papéis limitadores. Urge trabalhar competências e habilidades de comunicação, trabalhar protagonismo social e não apenas “empoderamento” da mulher.
 
É preciso ter sempre presente que a violência contra a mulher é violência contra a família e as intervenções do estado precisam ir muito além da responsabilização criminal do autor, enfatizando-se o exercício da cidadania das mulheres, as possibilidades de acesso à rede de serviços e à Justiça, buscando-se a implementação de ações educativas de prevenção, o fortalecimento das redes de atendimento e a capacitação de seus profissionais.  
 
“Nova é a Atitude. E a novidade é que ela pode ser aprendida”. (Walter Benjamin. Um estudo sobre Brecht)
 

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