O
contrato é a maneira segura de formalizar um acordo. É bom para quem
oferece o serviço e para quem o contrata, pois constitui prova física
que pode ser utilizada judicialmente. Nele estão descritas as obrigações
de cada um e os procedimentos a serem adotados em certas situações. Mas
nem tudo é perfeito. Em alguns contratos existem cláusulas que acabam
dando muita dor de cabeça ao contratante.
As
cláusulas abusivas são aquelas que geram desvantagens ou prejuízos para
o consumidor, em benefício do fornecedor. Alguns exemplos: diminuir a
responsabilidade do contratado, no caso de dano ao consumidor; obrigar
somente o contratante a apresentar prova, em um processo judicial;
permitir que o fornecedor modifique o contrato sem autorização do
consumidor; estabelecer obrigações para outras pessoas, além do
contratado ou contratante, pois o contrato é entre eles.
Essas
cláusulas têm sido encontradas em vários tipos de contrato, como nos de
adesão, que impõem cláusulas preestabelecidas por uma das partes,
cabendo à outra apenas aderir ou não ao estipulado. Veja nesse texto o
que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem decidindo sobre o tema.
Representação de mutuário
Ao julgar o REsp 334.829, a
Terceira Turma concluiu que o Ministério Público é legítimo para propor
ação representando proprietários de imóveis contra cláusulas abusivas
que foram contratadas, em seu nome, pela construtora junto à instituição
que financiou o empreendimento. Com esse entendimento, a Turma
confirmou as decisões que liberaram apartamentos construídos pela Encol
S/A, no Setor Sudoeste, em Brasília, de hipotecas contratadas perante o
Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge). A dívida deixada junto ao Bemge
impedia o registro dos imóveis.
A
relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, entendeu que a dimensão do
dano causado aos consumidores pela extensão dos negócios entabulados
pela construtora falida, sob o enfoque comunitário, é de extrema
importância, pois a iniquidade de uma cláusula que permite à
incorporadora oferecer o imóvel alienado em hipoteca por dívida sua,
mesmo após a sua conclusão ou a integralização do preço combinado, é
hipótese que causa dano não só ao patrimônio da empresa como também ao
patrimônio de inúmeros brasileiros.
Segundo
ela, não resta dúvida de que há relação de consumo entre a empresa
incorporadora e os promitentes compradores da unidade imobiliária. Por
essa razão, a incorporadora enquadra-se no conceito de fornecedora de
produto (imóvel) e prestadora de serviço (construção de imóvel nos
moldes da incorporação imobiliária), enquanto os compradores são
considerados consumidores finais.
Já no REsp 416.298, a
Quarta Turma decidiu que o Ministério Público é legítimo para propor
ação contra banco em caso de cobrança indevida de taxas em contrato do
Sistema Financeiro da Habitação (SFH). A decisão manteve liminar que
suspendeu a cobrança de taxas pela Nossa Caixa Nosso Banco S/A a
mutuários do SFH em São Paulo.
Para
o ministro Ruy Rosado de Aguiar, relator do processo, retirar do MP
essa defesa é assegurar a continuidade da conduta abusiva, que lesa
grande número de pessoas em contratos de adesão, sem qualquer
perspectiva concreta de outra ação eficaz. O relator também destacou em
seu voto decisões do STJ reconhecendo a legitimidade do MP para propor
ação civil pública sobre cláusulas abusivas relacionadas a mensalidades
escolares, contratos de locação, bancários, de compra e venda para a
aquisição da casa própria e de financiamento imobiliário.
A
Corte Especial também decidiu sobre o tema. No EREsp 141.491, o órgão
entendeu que o Ministério Público pode representar mutuários perante a
Justiça. A ação proposta pelo MP de Santa Catarina era contra uma
empresa que teria se utilizado de cláusulas abusivas e de cobrança
ilegal de juros e correção monetária nos contratos de compra e venda de
unidades residenciais em Florianópolis e no município de São José (SC).
Conceito de consumidor
No julgamento do REsp 1.010.834, a
Terceira Turma admitiu a ampliação do conceito de consumidor a uma
pessoa que utilize determinado produto para fins de trabalho e não
apenas para consumo direto. Com tal entendimento, a Turma negou recurso
de uma empresa que pretendia mudar decisão de primeira instância, que
beneficiou uma compradora que alegou ter assinado, com a empresa,
contrato que possuía cláusulas abusivas.
A
relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, considerou que embora o
Tribunal tenha restringido anteriormente o conceito de consumidor à
pessoa que adquire determinado produto com o objetivo específico de
consumo, outros julgamentos realizados depois voltaram a aplicar a
tendência maximalista. Dessa forma, agregaram novos argumentos de modo a
tornar o conceito de consumo “mais amplo e justo”, conforme destacou.
Segundo
a relatora, pode sim ser admitida a aplicação das normas do CDC a
determinados consumidores profissionais, “desde que seja demonstrada a
vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica” da pessoa.
Busca e apreensão
No REsp 1.093.501, a
Quarta Turma impediu mais um caso de consumidor que compra veículo,
deixa de pagar as parcelas do financiamento e entra com ação revisional
alegando a existência de cláusulas abusivas para impedir que o bem
financiado seja apreendido. De forma unânime, a Turma reformou decisão
do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e concedeu liminar de busca
e apreensão em favor de uma financeira.
De
acordo com o relator do recurso, ministro João Otávio de Noronha, não
pode prevalecer a tese de que a probabilidade da existência de cláusulas
abusivas no contrato bancário com garantia em alienação fiduciária
tenha o condão de desqualificar a mora já constituída com a notificação
válida, para determinar o sobrestamento do curso da ação de busca e
apreensão, esvaziando o instituto do Decreto-Lei 911/69.
No julgamento do REsp 267.758, a
Segunda Seção concluiu que é permitido ao devedor discutir a
ilegalidade ou a abusividade das cláusulas contratuais na própria ação
de busca e apreensão em que a financeira pretende retomar o bem
adquirido. A decisão teve como base o Código de Defesa do Consumidor
(CDC).
Para
os ministros, após o advento do CDC, todas as relações econômicas por
ele abrangidas passaram a levar em consideração princípios fundamentais
como o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, a necessidade de
tornar o mais igual possível a situação do cidadão nas relações de
consumo e o seu direito de pedir a modificação das cláusulas
excessivamente onerosas.
Restrição de transplante
Ao julgar o EREsp 378.863, a
Segunda Seção manteve decisão da Terceira Turma que entendeu não ser
abusiva a cláusula de contrato de plano de saúde que exclui da cobertura
os transplantes de órgãos. A ação pretendia obrigar o plano de saúde a
custear transplante para um dos seus associados, que posteriormente veio
a falecer.
Os
pais de associado da Blue Life entraram com recurso no STJ pedindo que
fosse reconhecida como abusiva a cláusula contratual que excluía
transplantes heterólogos (introdução de células ou tecidos de um
organismo em outro).
Alegou-se
ofensa ao Código de Defesa do Consumidor nos artigos 6º, que define os
direitos básicos do consumidor; 8º, que obriga que os produtos postos no
mercado não tragam prejuízos ou riscos à saúde do usuário, e 39, que
veda práticas abusivas dos fornecedores de produtos e serviços.
Também
teriam sido infringidos, no entender dos autores da ação, os artigos
46, 47 (que regulam contratos) e 51 (que veda cláusulas abusivas ou
leoninas) do CDC e os artigos 458 e 535 do Código de Processo Civil.
O
relator, ministro Humberto Gomes de Barros, considerou adequada a
decisão que não classificou a cláusula como abusiva. O associado teria
entrado no plano de livre vontade, com total consciência e as cláusulas
de restrição seriam claras o suficiente para o consumidor médio. Segundo
o ministro Gomes de Barros, a jurisprudência do STJ entende que, mesmo
regidos pelo CDC, os contratos podem restringir os direitos dos
consumidores com cláusulas expressas e de fácil compreensão. A decisão
individual do ministro Gomes de Barros foi confirmada pelos demais
ministros da Terceira Turma.
Não
conformados, os pais do associado entraram com embargos de divergência
na Segunda Seção. Esse recurso é usado quando há decisões judiciais
conflitantes sobre a mesma matéria dentro do Tribunal. Eles alegaram
haver entendimentos diferentes na Terceira e na Quarta Turma e na
própria Segunda Seção. A tentativa foi rejeitada pelo ministro Jorge
Scartezzini, o que levou a outro recurso, dessa vez apreciado por todos
os ministros da Seção. Com a aposentadoria de Scartezzini, o caso foi
distribuído ao ministro Fernando Gonçalves.
Para
os ministros da Segunda Seção, a divergência apontada não foi
demonstrada, pois foram apresentadas apenas decisões da Terceira Turma.
Para haver divergência, as decisões devem originar-se de órgãos
julgadores diferentes. Além disso, não haveria semelhança nos fatos
apontados nas decisões citadas, como exigem os artigos 255 e 266 do
Regimento Interno do STJ, já que se refeririam a situações diferentes,
como tratamento de Aids ou tempo de internação de paciente.
“Naqueles
casos as cláusulas eram dúbias, sendo que as cláusulas limitativas de
direito do consumidor deveriam ser redigidas com clareza e destaque”,
aponta a decisão. Exatamente o que ocorria no contrato da Blue Life.
Além disso, embora o recurso não tenha sido acolhido, os ministros
destacaram que a cláusula do contrato que excluía da cobertura o
transplante de órgãos não era abusiva.
Processos relacionados: REsp 334829, REsp 416298, EREsp 141491, REsp 1010834, REsp 1.093.501, REsp 267758 e EREsp 378863
Fonte: Superior Tribunal de Justiça
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